A Historia de um Epitaciano
A Historia de um Epitaciano
Numa tarde comum de primavera, um homem acompanhava com sua visão perfeita e audição intacta, o balé dos pássaros nas arvores da praça central. Crianças de diversas idades também marcavam presença, todas corriam e brincavam freneticamente. Ao passar pelo homem o comprimento era certo, algumas crianças ele conhecia pelo nome certo, mas todas , sem exceção, sabiam o nome dele. Chapéu de couro. Uma figura popular, cheia de vitalidade, que nunca era visto sem o famoso acessório na cabeça que lhe rendeu o apelido. Entre uma brincadeira e outra as crianças paravam, conversavam, davam gargalhadas. Havia começado mais uma seção de “causos” do Chapéu de Couro. Nada de conversa contador de historias. Possivelmente, porque muitas delas ele tinha vivido.
Chapéu de couro parecia ser uma espécie de ser superior, pois do alto de sua simplicidade para com a vida, contrariava todos os prognósticos. Idade avançada, saúde perfeita, disposição invejada, memória excelente. Qual seu segredo?-perguntavam alguns. O que ele come? Qual a sua formula secreta?- diriam outros. A resposta nunca veio. Mesmo antes de sua morte, Raimundo Gomes dos Santos, como era seu verdadeiro nome, foi alvo de estudos por cientistas franceses, para qual nosso personagem doou um dente. Eles queriam descobrir entre outras coisas, qual o segredo da longevidade daquele simples homem. “Não tem segredo algum!” dizia ele:” Minha vitalidade é resultado do trabalho ao ar livre e, contato com a natureza, ausência do vício de fuma, boas horas de sono e boa alimentação”.
O Curioso, é que a definição de boa alimentação que temos hoje nada tem a ver com o cardápio que fazia parte do dia a dia de chapéu de Couro. Para um homem que viveu nos tempos da escravidão antes de sua abolição, mantinha uma dieta a base de feijão preto, carne e angu. Quando liberto, fazia em sua casa, sua própria comida, utilizando-se basicamente de toucinho, carne e feijão. No café da manha ele afirmava comer meio quilo de toucinho e café com manteiga.
Mas, para contarmos a historia de Chapéu de Couro de forma mais completa, devemos voltar no tempo ainda mais. Quando nasceu Raimundo Gomes dos Santos, O Chapéu de Couro, em Diamantino (MG) no dia 23 de setembro de 1860. Era filho de José Gomes dos Santos, Português que exercia a ocupação de condutor de tropas, e Flausina, de nacionalidade africana e escrava no Brasil. De seu pai Herdou os olhos azuis, e de sua mãe a cor negra. Teve pouco contato com o pai, que trabalhava como viajante, transportando ouro e pedras preciosas de Minas Gerais para o Rio de janeiro. De lá ouro seguia para a Europa.
De Menino à Escravo
Com apenas Três anos de idade, o pequeno Raimundo fora a fazenda de João Floriano com sua mãe, começou a trabalhar efetivamente com 10 anos, ocupava-se lavrando cascalho, construindo cercas e na lavoura de café. Segundo Chapéu de Couro, Todos os escravos moravam em um grande barracão, que parecia com uma cadeia. Eram as famosas senzalas, que tanto ouvíamos. As refeições eram servidas dentro desses barracões, independente se o escravo estava na sede da propriedade ou estava no campo, era lá que deviam comer. “Tudo que comia era feito na própria fazenda e era feito na própria fazenda era feito em fartura, às vezes até jogava fora porque estragava, só não estragava era a pinga”, - dizia Chapéu de Couro. Ele tinha boas lembranças de quando era escravo. Segundo ele, tinha uma vida muito boa, quando questionado sobre as temíveis torturas, dizia que só era castigado o escravo que era ruim, preguiçoso e fugitivo, atitudes que ele não possuía, mas sua filha luzia, contradiz essa afirmativa, dizendo que o pai fora muitas vezes castigado por ser um homem ruim.
Homem Livre
Chapéu de Couro, Só veio a se tornar um homem livre, quase um ano depois de abolida a escravidão no Brasil. Teve sua carta de alforria lavrada em peças de linho. Logo depois, Mudou-se para ribeirão Preto, trabalhando na Fazenda Onorias, da família Junqueira como pessoa livre e assalariada, trabalhando com um carroção de burros, transportando milho, feijão e café para máquinas beneficiadoras das aglomerações urbanas. Três anos depois, Chapéu de couro foi residir na região de Barretos, Onde transportava madeira. Permanecendo por 40 anos na região. Em Barretos casou-se com sua primeira esposa Encarnação Rodrigues, o qual dizia ter tido nove filhos. Ferida pelo chifre de uma vaca, Encarnação veio a falecer, e após quatro anos casou-se com Henriqueta Rodrigues, Sua cunhada, em casamento de conveniência, pois precisava desta para cuidar de seus filhos. Deste casamento teve mais quatro filhos. Enviuvou-se novamente, e casou-se com a italiana Júlia Alves dos santos, em Bauru, Teve seis Filhos. No total, Chapéu de Couro teve 19 filhos.
Epitaciano
Só em 1931 é que começou a ligação de Chapéu de Couro com Presidente Epitácio. Atraído Pela Valorização da região devido às plantações de café e implantação da ferrovia. Sua Intenção era grilar terras e acabou conseguindo seu objetivo, mas segundo os registros, as terras que ele conseguiu acabaram passando para outras famílias. Incansável, trabalhou transportando madeira por terra e agua, período em que chegava a ficar nove meses fora de casa. Mesmo os três meses que permanecia em sua residência só aconteciam, pois era o período de chuvas torrenciais, que impossibilitava seu trabalho. No quintal, fez roçada e plantios, além de criar animais para sua subsistência. Por opção própria da sua natureza simplória, Chapéu de Couro não possui energia elétrica em casa, dizia preferir iluminar sua casa com a luz do lampião a querosene.
Boêmio, Carismático e Vaidoso.
Confessou ter sido preso várias vezes, por estar bêbado e fazendo bagunça pela cidade, mas a prisão era só para curar o efeito do álcool, sua simpatia era tamanha com todos ao ponto de que a cela ficava destrancada para ele sair da cadeia na hora que quisesse. Os moradores mais antigos de Epitácio afirmam que ele era muito querido por todos. Também conquistava as crianças, como vimos no inicio da matéria. Ele retribuía o carinho levando-as para passear nos bons cavalos que possuía. Além de tudo era vaidoso, estava sempre bem trajado, e cuidava bem da sua aparência.
Símbolo
Em 1988, Chapéu de couro foi escolhido pelo conselho de Participação e Desenvolvimento da comunidade negra, como símbolo do cartaz da campanha de comemoração dos 100 anos da abolição. Foi homenageado, ainda em vida, com seu nome dado a uma praça e uma Avenida em Presidente Epitácio. Também no ano de 1988, foi tema do samba enredo da escola unida da ribeira, abrindo o desfile de rua em cima de um carro alegórico e mostrando sua gimga com muito samba no pé. Chapéu de Couro foi por muitos anos considerado o homem mais velho do Brasil. Através de entrevistas, gravação de vídeos em VHS e palestras, Chapéu de Couro contribuiu no resgate da historia do negro e despertou o interesse de cientistas em estuda-lo “Eles querem me estudar porque no mundo inteiro não tem ninguém que tem a minha idade e enxerga e ouve tão bem quanto eu”.
Faleceu em 21/09/1994, Dois dias antes de completar 134 anos de idade. Chapéu de Couro deixa para a sociedade posicionamentos que devem ser refletidos, para entendimento e valorização da questão social no Brasil.
Fonte: Revista Mega Mix. 9° Edição